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Sexta, 19 de Janeiro de 0024 09:00

A Casa do Café com Leite

 

                                                                                                                                                        por Geraldo Affonso

        Finalmente, em boa hora, a Prefeitura de Ouro Fino adquiriu a tão decantada Casa do Café Com Leite, um dos mais antigos prédios residenciais de nossa cidade e, por vários motivos, um importante marco de nossa história que há muito merecia ser preservado e restaurado em sua estrutura original.  Sua construção remonta às ultimas décadas do século XIX e, possivelmente, seu primeiro proprietário foi o produtor rural Francisco Ribeiro da Fonseca (meu bisavô), que também foi um dos grandes empreendedores culturais que viveram em Ouro Fino. Basta dizer que a antiga Escola Normal, atualmente nomeada como “Escola Estadual Francisco Ribeiro da Fonseca”, assim como o primeiro cinema inaugurado em Ouro Fino são frutos do seu inegável espírito empreendedor.

      Sua filha mais velha, minha nunca esquecida avó materna, minha querida Vovó Marica, adorava contar “causos” de sua adolescência e juventude, passada entre a fazenda de seus pais e a casa que seria conhecida como a do “Café Com Leite”. Memória privilegiada, mesmo após os oitenta, resgatava de suas recordações pretéritas sua convivência com os escravos de seu pai e de seu avô, nomeando com precisão os nomes de vários deles. Contava também sobre os “assustados”, uma espécie de baile familiar que transcorria na “casa da Tia Ursulina”, prédio ainda existente, talvez o mais antigo de Ouro Fino e que hoje está passando por uma restauração muito bem feita, graças ao espírito preservacionista de sua atual proprietária.

       No final dos anos cinquenta, adquiri meu primeiro gravador portátil com o objetivo de gravar aulas na faculdade, mas tive também a feliz idéia de fazer uma gravação com minha avó, aproveitando sua loquacidade e resgatando para a posteridade familiar retalhos de um tempo tão antigo.  Bem mais tarde, em 1990, ocasião em que uma das irmãs de minha avó, minha Tia Mercedes completou 100 anos e foi homenageada pelo prefeito de então, Silvio Miranda, ocasião em que também tive a oportunidade de fazer uma gravação com minha tia, já com imagem e som. Memória bem preservada, Tia Mercedes relatou fatos que presenciou em sua infância e juventude, inclusive descreveu a festa de casamento de minha avó no ano de 1900, transcorrida também em sua casa (Casa do Café Com Leite), mencionando até o nome da banda de musica contratada por seu pai para o evento. Vale acentuar que meu bisavô, Francisco Ribeiro da Fonseca, Seu Chicó, nos meses finais do ano de 1912, acometido de uma enfermidade renitente, resolve procurar sua cura na Águas Virtuosas de Lambari, cidade que tinha como prefeito seu genro, o advogado Antonio Pimentel Júnior (meu avô materno), morrendo naquela cidade em dezembro de 1912.  Assim, o nominado “Acordo de Ouro Fino”, ou “Pacto do Café com Leite”, como é mais conhecido, ou seja, uma reunião de cunho político entre a maior expressão do Partido Republicano Mineiro, o Presidente Julio Bueno Brandão e um dos caciques do Partido Republicano Paulista, o então deputado Cincinato Braga, reunião essa ocorrida em maio de 1913, evidentemente que não teve como anfitrião meu bisavô, mas, sim, minha nunca esquecida bisavó, a Vovó Júlia, falecida no ano de 1943, irmã de Dona Hilda Miranda Bueno Brandão, esposa do então governante de Minas Gerais, laço familiar que justifica o porquê o referido encontro político teve como palco o mencionado imóvel. Vale salientar que na época, 1913, o então Presidente Júlio Bueno Brandão residia no Palácio da Liberdade em Belo Horizonte e em suas esporádicas vindas à sua cidade natal ficava hospedado na casa de seus cunhados, como, aliás, bem registrava a imprensa da época.   

   Cumpre observar, portanto, que inexiste dúvida de que o acordo celebrado entre os dois caciques dos Partidos Republicanos Mineiro e Paulista ocorreu de fato em Ouro Fino.  No entanto, não foi esse encontro que deu início à nominada rotatividade entre Minas e São Paulo, quanto à escolha do candidato à mais alta magistratura do país nos áureos tempos da velha república. Como bem esclarece Affonso Silviano Brandão, filho do médico e político mineiro Francisco Silviano de Almeida Brandão, em seu livro memorialista “Na Vivência de Meu Tempo”. Segundo Affonso Silviano, seu pai, na época Presidente de Minas Gerais (1898-1902), estabeleceu com o então Presidente da República Campos Salles as bases do que seria o acordo Minas - São Paulo para a escolha do nome de quem ocuparia a magistratura máxima do país nas próximas legislaturas. Rodrigues Alves, um paulista, seria o candidato a presidente (1902-1906) e ele, Silviano Brandão, mineiro, sairia como vice-presidente, mas com a promessa de que em 1906, ele, Silviano, seria o sucessor de Rodrigues Alves. Eleita a chapa Rodrigues Alves /Silviano Brandão, este, no entanto, não chegou a assumir a vice-presidência da República, pois faleceu antes da posse aos 52 anos de idade. Substituído na vice-presidência por Afonso Pena, também um mineiro, este, de fato, é quem sucederia o paulista Rodrigues Alves, mantendo assim, o acordo que bem mais tarde, já em decorrência do pacto de Ouro Fino de 1913 seria cognominado como Café com Leite.  

        Então, fora de qualquer dúvida, que a rotatividade entre presidentes de Minas e São Paulo não teve início com o pacto de Ouro Fino em 1913, mas muito antes, como bem esclareceu não só Affonso Silviano como outros historiadores.  Então qual seria a importância do acordo de Ouro Fino, a ponto de ser conhecido nacionalmente como Pacto do Café com Leite? Bem, aí vale mencionar um acontecimento não previsto no âmbito dos caciques partidários e que iria quebrar a então hegemonia dos partidos republicanos de Minas e São Paulo, quanto à escolha das candidaturas presidenciais: uma forte pneumonia acometeria o presidente Afonso Pena em junho de 1909, fato que o levaria à morte e sua substituição por seu vice-presidente, Nilo Peçanha, um advogado de Campos dos Goytacazes, na época um dos principais políticos do partido Republicano do antigo Estado do Rio de Janeiro. Assim, a inesperada ascensão de Nilo Peçanha ao poder supremo da nação, advogado culto, inteligente e totalmente avesso aos conchavos que tributavam hegemonia ao eixo Minas-São Paulo, embora tenha governado apenas um pouco mais de um ano, teve grande influência na escolha de seu sucessor. Mandando às favas o acordo da rotatividade Minas-São Paulo, Nilo apoiou firmemente como seu sucessor o Ministro da Guerra de seu governo, um militar gaúcho com grande liderança nas Forças Armadas, o Marechal Hermes da Fonseca, fato que estabeleceu um racha nas hostes dos vários partidos republicanos.

        A eleição presidencial de 1910 ficaria marcada pela dicotomia militar contra civil, pois o velho jurisconsulto Rui Barbosa, advogado inteligente e poliglota, ex Ministro da Fazenda que há tempos namorava a Presidência da República resolve empunhar a bandeira civilista e percorre o Brasil clamando contra o retorno do militarismo, inclusive com o apoio de vários partidos republicanos, inclusive o Paulista (PRP) que lança como candidato a vice-presidência o governador de São Paulo Manoel Joaquim de Albuquerque Lins. O Partido Republicano Mineiro (PRM), embora titubeante, apóia o candidato militar e lança como candidato a vice-presidente, o advogado e político sul-mineiro Wenceslau Braz, que seria eleito juntamente com o Marechal Hermes da Fonseca. Cumpre considerar que Rui Barbosa, tribuno eloquente e inteligentíssimo, com sua chamada “Campanha Civilista” conseguiu sensibilizar parte considerável da classe média urbana, principalmente nas capitais, mas sua pretensão política esbarrou na votação interiorana, na época fortemente influenciada pelo chamado voto de cabresto, característica do coronelismo com seus currais eleitorais manipulados pelos grandes produtores rurais. 

        Em Minas, as eleições de 1910, transferiram da beira-mar carioca para o Palácio da Liberdade em Belo Horizonte, o ouro-finense Júlio Bueno Brandão, político sagaz que desde 1897 e por mais de uma legislatura representava seu estado no Senado da República.  Anos atrás, o então Senador Bueno Brandão desempenhara com grande proficiência os principais cargos políticos em sua terra natal, inclusive a intendência municipal, cargo equivalente ao de prefeito na nomenclatura atual, ocasião em se destacou como grande administrador, trazendo enormes melhorias para sua cidade.  Quando assumiu o Governo de Minas, Bueno Brandão era um político dos mais conhecidos e respeitados nacionalmente, mesmo porque tinha a seu favor uma longa trajetória legislativa inclusive como Senador da República. Sua atuação no governo mineiro foi pautada por grandes realizações, fato que levaria seu nome a ser cogitado para a Presidência da República, no entanto, descartado por ele próprio, conforme bem registraram os jornais da época.

           O ano de 1913 foi de grande agitação política, pois já se começava a discutir a sucessão presidencial que se daria no ano seguinte, e Júlio Bueno Brandão, governando Minas, não via com bons olhos as articulações do Presidente Hermes da Fonseca em favor de um conhecido e polêmico político gaúcho, o Senador Pinheiro Machado. Daí adveio a necessidade do retorno da coligação entre os partidos republicanos de Minas e São Paulo, rompida desde a eleição de 1910, objetivando que mais um gaúcho, dessa vez um político de temperamento forte e muito criticado pela imprensa não assumisse a presidência da república. Na prática, o encontro realizado em Ouro Fino entre o Presidente Julio Bueno Brandão, representando o Partido Republicano Mineiro (PRM) e o deputado Cincinato Braga (PRP), representando o Partido Republicano Paulista (PRP), não iniciou a chamada política do Café com Leite, como já foi dito, mas a revitalizou fortemente, mesmo porque essa prática subsistiu até o ano de 1930.  Assim, o acordo celebrado no interior da mencionada residência revestiu-se de grande valor histórico, justificando assim ser a mesma conhecida como “Casa do Café com Leite”, pois reacendeu um pacto que iria ter grandes conseqüências no cenário político de nossa pátria, inclusive sendo um dos estopins da chamada revolução de 1930

      Além do valor arquitetônico, pois reflete a tendência artística dos prédios mais refinados de sua época, não se pode negar seu valor cultural. A maioria dos netos do casal Francisco Ribeiro da Fonseca e Júlia Miranda Fonseca, nasceram na mencionada residência, pois as filhas casadas (todas) que não residiam em Ouro Fino, como era prática na época, procuravam o aconchego materno ao se aproximar o dia do parto. Entre os netos do casal, entre outros e outras, que nasceram na referida casa, pode-se indicar três que se destacaram nos meios culturais de nossa Pátria, o jornalista e poeta Maurício de Moraes, o escritor Antonio Fonseca Pimentel e o conhecido contista mineiro Ildeu Brandão .

  Finalmente, cabe ainda registrar que o referido imóvel foi a residência citadina da família de Francisco Ribeiro da Fonseca e sua esposa Júlia Miranda Fonseca por quase 40 anos, sendo que com grande tristeza para seus familiares em razão dos transtornos financeiros decorrentes da imensa desvalorização do preço do café, decorrente da crise de 1929,  minha bisavó Júlia teve que hipotecar o imóvel o que provocaria sua perda já no início dos anos trinta.  

       Enfim, a incorporação ao patrimônio público de Ouro fino de um imóvel que foi palco de um acontecimento histórico de tamanha relevância, acrescida da cuidadosa restauração a que foi submetido, assim como, a instalação no local de uma instituição de difusão cultural das mais importantes, como é um Conservatório Musical, sem dúvida representa uma das grandes conquistas em favor de nossa cidade. Parabéns aos seus idealizadores e construtores.

 (Geraldo Affonso é escritor e  presidente da Academia Ouro-finense de Letras e Artes (AOLA)     

Colunista
Geraldo Affonso nasceu em Ouro Fino em 1934, mas, antes de completar 3 anos, sua família mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade onde cresceu, estudou e viveu até se aposentar, já com mais de 60 anos. Nesta ocasião transferiu sua residência para sua cidade natal onde passou a colaborar no jornal Gazeta de Ouro Fino, assim como na Rádio Difusora Ouro Fino, apresentando um programa de entrevistas de grande audiência regional, o Microfone Aberto. Formado em Letras e Direito, ambos pela Universidade Federal Fluminense, exerceu tanto o magistério como a advocacia, bem como, por concurso, o cargo de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. É casado tendo cinco filhos, netos e bisnetos.
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