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Quarta, 21 de Setembro de 2022 22:47

Um Terraço Encantado

Publicado em Outubro de 2006

O lugar era um terraço encantado, melhor dizendo, para cobertura de um apartamento na Ave-nida Bartolomeu Mitre, bairro do Leblon, Cidade Maravilhosa. Anos dourados, quase no final da década de cinquenta, rapazes e moças, muito Gin com água tônica, violões, cantores a valer. Às vezes, a noitada terminava na praia vendo o sol nascer, num tempo em que ainda se podia fazer tais progra-mas.

Vera, a colega de faculdade que nos brindava com seu terraço encantado, tinha um sorriso triste e carregava a frustração de ter sido aprovada no concurso que lhe abriria a porta para sua voca-ção, a diplomacia, mas barrada num incompreensível teste psicológico. Eu não diria que era uma moça feia, mas estava longe, muito longe de ser considerada bonita. Nessa época teria uns 25 anos, um tanto alta para os padrões femininos, corpo atlético em contraste à doçura de seus gestos e de sua voz. Ficamos amigos e passei a frequentar sua casa, ou melhor, seu terraço, mesmo fora das reuniões noturnas. A desculpa era o estudo, mas acabávamos invariavelmente curtindo Aznavour ainda no iní-cio de carreira regado a muito gim-tônica. Madalena, sua mãe rica e viúva, não escondia a sua preo-cupação com as libações alcoólicas da filha única, e procurava nos frequentadores mais assíduos do “Chez Nous” - o nome com que batizamos o terraço, algum cúmplice na tentativa de afastá-la do corpo. Esforço inútil, pois, além do cigarro, sua marca registrada era o copo de gim-tônica, quase uma extensão de sua mão direita.

E as músicas? Além do indefectível Charles Aznavour, também curtíamos Piaf, além das bra-sileiríssimas Dolores Duran e Elizete Cardoso. Nas cantorias, tal qual em inúmeros outros aparta-mentos da Zona Sul carioca, predominavam os acordes sincopados da Bossa Nova, ainda em seus primórdios. Lembro-me bem de um jovem diplomata, amigo de nossa anfitriã, que dedilhava com maestria uma canção de sua lavra que se tornaria uma espécie de hino para os jovens frequentadores do terraço. Tanto a música como a letra ficaram impregnadas nos porões de minha memória, mesmo passadas tantas e tantas décadas: “Chez nous, nous irons toujours / veio a lua no telhado / mas o único embaraço é saber como sair... / Bebendo gim, batendo papo / Madalena lá embaixo dando bronca / nous irons toujours...”

Bem, para encurtar a conversa, o passar impiedoso do tempo, carrasco implacável das ilusões da juventude, encarregou-se de desfazer a turma e cada um tomou seu destino. Nunca mais vi minha triste amiga Vera, mas tomei conhecimento de sua existência posteriormente através da imprensa. A primeira vez, pela televisão, quando focalizaram uma mulher magérrima, desfigurada pelo uso ex-cessivo de drogas, equilibrando-se no beiral de um edifício em Ipanema, pronta para o salto mortal. Foi salva pelos bombeiros e encaminhada à uma clínica psiquiátrica. E a segunda vez, bem mais recente, nos anúncios fúnebres do jornal “O Globo”, em que sua mãe convidava parentes e amigos para a missa de 7° dia. Compareci à Igreja de Santa Mônica, mas poucas pessoas lá estavam e, dos frequentadores do terraço, apenas uma de nome Maria Helena, amiga até os últimos dias de minha antiga amiga. Madalena lá estava, ainda rija, apesar dos seus 80 e tantos anos, mas imensamente triste frustrada com a morte da filha. Vera contraíra um câncer galopante, justamente quando a vida lhe parecia mais prazerosa, pois livrara-se do alcoolismo e da dependência das drogas e trabalhava com dedicação no conhecido estabelecimento de ensino de sua família.

Saí da igreja conversando com Maria Helena e não deixamos de recordar aqueles tempos da juventude e mesmo cantar baixinho: “Chez nous, nous irons toujours...”

Publicado em Outubro de 2006.

Colunista
Geraldo Affonso nasceu em Ouro Fino em 1934, mas, antes de completar 3 anos, sua família mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade onde cresceu, estudou e viveu até se aposentar, já com mais de 60 anos. Nesta ocasião transferiu sua residência para sua cidade natal onde passou a colaborar no jornal Gazeta de Ouro Fino, assim como na Rádio Difusora Ouro Fino, apresentando um programa de entrevistas de grande audiência regional, o Microfone Aberto. Formado em Letras e Direito, ambos pela Universidade Federal Fluminense, exerceu tanto o magistério como a advocacia, bem como, por concurso, o cargo de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. É casado tendo cinco filhos, netos e bisnetos.
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